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sexta-feira, 30 de abril de 2010

Ossos alheios


Uma enxurrada de palavras borbulhava em minha mente – hora errada; o caderno está longe, o veículo em movimento – impossível escrevê-las antes que se percam. Todos os meses é o mesmo dilema: é preciso cortar o cabelo, cortar os gastos, cortas as unhas, cortar as festas, cortar os retratos antigos. Uma vida de lâminas sempre afiadas; histórias com finais mal contados. Eu a abraçava como quem abraça a uma serpente, preparada para dar o bote a qualquer momento: venenosa. Perpassada de rancor e medo – dos seus olhos dissimulados e frios – eu guardava esse vendaval de sentimentos antes que me comprometessem. Assumi-los seria submeter-me a minha própria verdade.
Quando gasto meus dedos procurando uma fuga para minha aflição é porque não sou mais capaz de confessar. Os problemas nunca se firmam realmente claros, e eu me pergunto o que pode estar me deixando tão irritável e intolerante. Provavelmente alguma ausência, uma saudade sem nome. Desisti de compreender e parti para as válvulas de escape imundas: constantemente jorrando ódio, como um animal guloso, faminto e carnívoro, esbravejando, gritando insolências. Meu vocabulário tornou-se impróprio, as palavras sujas escorrem entre meus lábios sem que eu tenha tempo para contê-las – num tom ríspido – com um olhar de ameaça. Deve ser culpa dessas malditas amarras que sinto prendendo meus membros. Queria desabar de uma escada e quebrar alguns ossos para poder sabê-los meus.
As diversões moram em outras cidades, meu inferno é um rosto pálido desaparecido no outro lado do país, meus sonhos são precários, difíceis de recordar: lembro-me apenas de ter acordado com ela doendo em mim, fisicamente. Ela que sempre foi sofrimento desperdiçado, decididamente o percurso mais infeliz e o esforço mais mal gasto. Todos os dias ter de tomar coragem para dar o primeiro passo, porque é preciso ir a dezenas de lugares, mesmo com as pernas ardendo em cansaço e desgaste.
Lembrar de não reclamar: porque ninguém vai se importar com as suas dificuldades enquanto há uma multidão de desgraçados e um sem fim de catástrofes acontecendo lá fora. Qual seria o som da liberdade se ela de fato existisse? Imagino que você tenha pensado em pássaros assoviando e uma brisa suave e fresca em seus cabelos e rosto. Ora, não se engane: isso não passa de um instante. Nem mesmo o alardeado “salvador da humanidade” conseguiu ser eterno; e depois de tanto espetáculo repleto de dor e sangue ainda existem tantos que descarregam blasfêmias no papel sem sentir o mínimo de culpa.
Que cor teria o céu durante o primeiro beijo com seu primeiro amor? Você só pode ter pensado numa mescla em tons de vermelho, cor-de-rosa e dourado; mas vá lá, se é o primeiro como você pode afirmar que é amor? Qual é o intuito de um cenário perfeito se os olhos se fecham? Acredito que a maioria das pessoas jamais notou.

Written by: Angélica Manenti

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