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terça-feira, 31 de agosto de 2010

Diálogo dos Ponteiros


Meu relógio de pulso só pode estar errado. O meu dia inteiro é um ponteiro sem rumo, perseguindo o fim: da tarde, da semana, da angústia. Meus minutos todos são o sempre-alerta, evitando os desastres que supostamente venham a se revelar. As madrugadas inóspitas, sem sonhos nos quais eu possa acreditar. Algumas noites jogadas fora com uma garrafa de conhaque barato. A vida nos mata lentamente; e o valor da vida não paga uma dose de qualquer bebida. Às vezes, principalmente nos dias em que não amanhece eu mal posso sentir o cheiro da vida por entre o véu de neblina. Como no inverno, quando a vida se esconde e fecha bem todas as suas janelas.
No relógio de parede, as voltas dos ponteiros me deixam tonta quando tento acompanhar seu ritmo: o tempo se foi. Mais uma espera se esgotou. A memória seguiu se vingando impiedosamente. Horas inúteis e corrompidas. Rasguei mais uma tentativa falha de carta de despedida. A lixeira transborda, lá pelas tantas da madrugada. Passei mais uma semana rasurando meus próprios pensamentos.
Desisto.
Estas linhas estão tortas, o papel está molhado, as idéias se fizeram pó, ao vento.
- Levante-se. Ou você pretende gastar sua vida sentada nessa cadeira?
Mas era da consciência mal saciada. Faltavam lembranças boas para revirar nas horas vagas.
- Vá descansar, um dia, durante o final de semana inteiro.
Mas é mentira. Estou sempre correndo, fugindo e evitando.
- Certamente, você deve ter um fôlego e tanto para escapar sempre assim – ilesa – das ofertas da vida, que são tantas e tão tentadoras. Dá mesmo para ser feliz sem nunca se entregar?
Mas é só por conta do terror – monstruosamente indescritível – que eu sinto de algemas. O fato de não precisar usá-las é quase um conforto para a alma.
- Poderiam lhe servir como lição. E quanto aquele seu assunto, você ainda espera uma ligação?
Aquela notícia. Era um apelo revivido, um tempo em vão. Esperar pode ser como o tédio dos dias de domingo e mais nada. Como se um momento, sem mais nem menos, a cena do filme congelasse. Voltaria a rodar quando o telefone tocasse ou a porta se abrisse. É claro que eu não parei nada daquilo que estava fazendo antes, só abandonei o que ficou pobre de razão. Eu ando ocupada, mas às vezes me pego distraída, imaginando aquele instante – como seria se ela voltasse – e o nosso sorrir de verdade, escorrendo alegria por todos os cantos. Seria um alívio, eu acho.

Written by: Angélica Manenti

quarta-feira, 18 de agosto de 2010

Antes do Outrora


Depois de tantas mudanças, eu regredi. Desfiz muitos dos passos que mais me custou caminhar. Voltei atrás por uma ponte que desabou num instante depois de eu atravessar. As vias se fecharam. A comunicação entre os fios que me mantinham de pé se rompeu. Desatei as pontas por onde ela me levava a agir. Migalhas. A própria sorte se arrebenta no muro do outro lado da nossa condição miserável. Até mesmo a escuridão se esvai sóbria e intolerante. A liberdade plena nos rouba o próprio ar dos pulmões. Tudo está perdido, descomposto. Não podemos sequer dormir; nosso tempo é furtado. Isto que tentamos sentir, forte, arrebentado, no espremer das notas de uma melodia mal desenhada, repetida centenas de vezes sem piedade, é o dilúvio dos sentidos já esgotados: a visão turva de fracasso e insônia; os ouvidos inflamados de cólera e dor; a língua atrelada a um gosto de angústia, no dissipar das horas mais vivamente aproveitadas; o cheiro do sono solitário, perturbado pelo suor de um pesadelo cético e amedrontado; o tato corrompido, que já não identifica as texturas diferentes do áspero.
Acorde antes que esse barulho invada seu quarto tranqüilo e derrube suas paredes protegidas. Deixe doer, que a música inunde seus tecidos nervosos e lhe afogue na minha nostalgia. Espere as lembranças serem provocadas até que irrompam as lágrimas, mas pare de destruir o nosso quarto. Eu não tenho culpa de ser um fantasma e não poder lhe tocar. Não rasgue as nossas memórias, nossas noites ficaram gravadas nesse cômodo inconveniente, acompanhando sua rotina e torturando seus pensamentos mais importantes. Não vá se livrar dessa esperança ainda, antes de eu tentar voltar.

Written by: Angélica Manenti

quarta-feira, 11 de agosto de 2010

A Sua Viagem


Quando voltar, traga para mim umas lembranças bem bonitas e a gente vai se divertir tanto contando as histórias. Traz assim, na sua memória, o lugar mais incrível que você sentir vontade de levar para casa; traz um cheiro bom daquele parque que tem um nome bem conhecido, e que eu sempre quis visitar; traz seu calçado ainda sujo das ruas de lá para eu saber que cor tem a terra no distante de nós. Só não traga saudades, porque dessa eu já vou ter em excesso aqui, e acho até que vou doar um tanto.
Você volta, né? Porque eu andei pensando assim, que se você topar com um sonho maior que o nosso, naquela cidade repleta de um-pouco-de-tudo, talvez você queira ficar para provar. É claro que eu sinto medo dos perigos que podem lhe sondar, mas eu tenho tanto orgulho da sua coragem que fico mais tranqüila; o que me arrepia mesmo é o pensar em perdê-la para um deslumbre dos seus olhos. Acho que você está indo conhecer um mundo no qual eu não saberia andar, de tão gigantes os movimentos.
Esqueci de lhe entregar isso antes – que eu achei tão simples e senti vergonha – mas não abre a caixa agora, espera quando você estiver longe e precisar de mim. Não vai achar esquisito quando vir que não tem nada dentro, o presente é simbólico. Entende que eu estou entregando meu amor para você levar, mesmo sem saber se você volta?

Written by: Angélica Manenti

segunda-feira, 9 de agosto de 2010

Meus Pertences


Estamos sempre covardes assim: beirando o fim. O mais da vida é tão desencontrado, e a gente aqui jogando fora a coragem. Tenho medo das ruas vazias. Essas horas calmas da madrugada, da maioria que dorme. Preciso de barulho e apego.
Quando esse dano vai passar? Isso que me afeta e me dói tem seus culpados, e eu não posso cobrar nada. Tem tanta palavra que eu nunca mais lembrei, e quando quis usar, acabei sem dizer. No caminhar da rotina eu vou me desfazendo, soltando as amarras e tomando distância do meu abrigo. Vou precisando de socorro e me mantendo apenas da esperança. Tão só que eu passo dias sem ver meus próprios pés. Vou circulando pela cidade, entrando em lugares onde acredito que possa te encontrar. Vou gastando quantas horas achar que suporto sem me agarrar em expectativas infundadas. Exausta, encontro o desespero. Parece que nada vai se resolver, eu não sei se quero chegar a uma conclusão e encarar outra derrota.
Não tenho armas, nem armadilhas. Não tenho mais palavras e nem bons motivos para te convencer. Não tenho jeito com as coisas bonitas do amor e sou treinada para sofrer. Não tenho dezenas de qualidades nem sou inacreditavelmente simpática. Não tenho um sorriso doce e não posso oferecer estabilidade emocional. Não posso fazer promessas sem me sentir hipócrita, nem posso contar muitas verdades sem parecer cruel demais. Não vou saber segurar as pontas e nem te dar os melhores presentes. Não vou recordar todas as datas nem ser fantástica em cada declaração.
Mas tenho muita vontade de te fazer feliz, mesmo sem saber por onde começar. Tenho as minhas cicatrizes para deixar como garantia e uma alegria muito sincera para te entregar aos poucos, no tempo em que me deixar ficar.

Written by: Angélica Manenti

Dia Nublado


Não vai adiantar procurar inspiração ao meu redor, ainda mais em um dia como hoje, de clima tão tímido e ameno. O dia que só existe na esperança de que os próximos venham melhores. Os movimentos nas ruas são os mesmos de todos os dias, e meu mundo parado é pequeno demais. A música ao fundo ainda é daquela nossa banda preferida.
Mas nesse som há hoje um tom de marcha fúnebre, desgastado pelo apelo do sacrifício, cobrindo-a com terra e sal. Não há cores, porque ela só gostava das rosas brancas; há uma estátua de um anjo traído guardando o local, porque ela acreditava; há veneno, porque ela o carregava nos olhos. Não há lágrimas, porque ela não as permitiria. Vai com ela um segredo calado, uma vaidade que me esgota e devora meus dias enquanto me questiono. Há uma nuvem que não pretende chover, porque ela gostava de comemorar no meio da rua, com os pés descalços.
Haveria luzes, se ela não tivesse se apagado.

Written by: Angélica Manenti