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quarta-feira, 18 de agosto de 2010

Antes do Outrora


Depois de tantas mudanças, eu regredi. Desfiz muitos dos passos que mais me custou caminhar. Voltei atrás por uma ponte que desabou num instante depois de eu atravessar. As vias se fecharam. A comunicação entre os fios que me mantinham de pé se rompeu. Desatei as pontas por onde ela me levava a agir. Migalhas. A própria sorte se arrebenta no muro do outro lado da nossa condição miserável. Até mesmo a escuridão se esvai sóbria e intolerante. A liberdade plena nos rouba o próprio ar dos pulmões. Tudo está perdido, descomposto. Não podemos sequer dormir; nosso tempo é furtado. Isto que tentamos sentir, forte, arrebentado, no espremer das notas de uma melodia mal desenhada, repetida centenas de vezes sem piedade, é o dilúvio dos sentidos já esgotados: a visão turva de fracasso e insônia; os ouvidos inflamados de cólera e dor; a língua atrelada a um gosto de angústia, no dissipar das horas mais vivamente aproveitadas; o cheiro do sono solitário, perturbado pelo suor de um pesadelo cético e amedrontado; o tato corrompido, que já não identifica as texturas diferentes do áspero.
Acorde antes que esse barulho invada seu quarto tranqüilo e derrube suas paredes protegidas. Deixe doer, que a música inunde seus tecidos nervosos e lhe afogue na minha nostalgia. Espere as lembranças serem provocadas até que irrompam as lágrimas, mas pare de destruir o nosso quarto. Eu não tenho culpa de ser um fantasma e não poder lhe tocar. Não rasgue as nossas memórias, nossas noites ficaram gravadas nesse cômodo inconveniente, acompanhando sua rotina e torturando seus pensamentos mais importantes. Não vá se livrar dessa esperança ainda, antes de eu tentar voltar.

Written by: Angélica Manenti

Um comentário:

  1. Eu já me conformei que quando eu preciso de um acalento, é só entrar aqui que eu o encontrarei. Há tanto ou quase nada de mim aqui... Essas sensações se chocam e me deixam extasiada. Eu gosto disso.
    Belíssimo texto, como sempre.

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